O que vem primeiro… o ovo ou o bullying? O papel
dos pais na educação
Texto de Arnaldo Cheixas
Dias, terapeuta analítico-comportamental, para VejaSP*
Na Páscoa do ano passado, a Autarquia de Proteção e
Defesa do Consumidor do Estado do Rio de Janeiro (Procon – RJ) determinou a retirada dos estabelecimentos comerciais
fluminenses de um ovo de Páscoa que era acompanhado de adesivos
destinados a personalizar a embalagem de acordo com o presenteado.
O produto trazia a frase “personalize a
embalagem com adesivos e sacaneie seu amigo”, que foi entendida como
incentivadora da prática de bullying. A ação do Procon parece ter sido motivada
pelo grande número de críticas ao produto nas redes sociais e, posteriormente,
na mídia. Não houve registro formal de reclamação na autarquia. Com a decisão
do Procon, teve início uma nova discussão: tudo é bullying?
Para contribuir com essa discussão, vou separar o
texto em duas partes. Na primeira, discutirei o que é bullying. Na segunda, vou
trazer algumas outras situações recentes na sociedade que, parece, podem nos
ajudar a pensar sobre o motivo de esse produto de Páscoa gerar tanta
repercussão na sociedade. A partir desses dois pontos, proponho olharmos para o
que me parece o verdadeiro problema.
Bullying
A expressão é usada para designar uma situação na
qual uma pessoa ou um grupo de pessoas é alvo de algum tipo de agressão (verbal
ou física) que ocorre de maneira sistemática e repetitiva. Embora associemos
sua prática ao ambiente escolar, o bullying pode ocorrer em diferentes
contextos (trabalho, família, vizinhança, internet…) e com pessoas de qualquer
idade. Então temos duas características importantes que servem de critério para
identificar uma situação de bullying: a ocorrência de uma agressão e a
recorrência sistemática dela ao longo do tempo.
A expressão nada mais é que uma palavra inglesa
para expressar um fenômeno conhecido em bom português: assédio moral. Desde
quando isso acontece na humanidade? Provavelmente desde sempre. Então, embora a
origem do termo bullying remonte à década de 1970, ele é usado para descrever
algo que sempre esteve presente nas relações humanas. O ganho que a delimitação
do termo trouxe é a possibilidade de entendermos o que há de comum entre
experiências vividas por pessoas diferentes e, com isso, estabelecer ações que
diminuam a probabilidade de ocorrência dessas agressões.
Será que somos coerentes?
Lembro-me que era comum o uso de adesivos com
piadas em fotografias antes da popularização das fotos digitais. Os fabricantes
de filmes e papel de fotografia forneciam esses adesivos aos lojistas para que
repassassem aos seus clientes que levavam seus filmes na loja a fim de revelar
as fotos neles contidas. As famílias se divertiam com esses adesivos. Será que
seriam considerados bullying atualmente?
Temos vivido tempos que me parecem exageradamente
legalistas sob determinados aspectos, como acontece também em outros países
ocidentais. Nos Estados Unidos, por exemplo, é comum produtos industrializados
trazerem instruções bizarras em seus rótulos para que se evite a necessidade
dos fabricantes pagarem indenizações por danos após sofrerem processos
judiciais. Vi um carrinho de bebê, por exemplo, com a seguinte instrução:
“Retire o bebê antes de fechar o carrinho.”
Outro exemplo de excesso de legalismo é o que
acontece no transporte público nas cidades brasileiras. Os veículos têm bancos
reservados para idosos, portadores de necessidades especiais, mulheres
gestantes ou adultos com criança no colo. Digamos que um ônibus tenha quatro
vagas reservadas para essa população mas num determinado momento todos os
lugares reservados estejam ocupados por quem necessita e entra um passageiro
idoso. Já tive a oportunidade de ver essa cena e noto ser comum que jovens
sentados em outros bancos não cedam seus lugares ao idoso. E já ouvi
explicitamente a justificativa: “Esse banco onde estou sentado não é reservado.”
Isso é que se chama jogar com o regulamento debaixo do braço.
Permitam-me citar mais um exemplo de incoerência de
nossa sociedade e que nos faz apelar para o legalismo. Quando uma cervejaria
famosa lançou uma marca nova no Brasil cujo nome tem forte apelo sensual
(Devassa), o fabricante produziu um comercial representativo desse apelo tendo
como protagonista uma famosa, bonita e sensual socialite estadunidense (Paris
Hilton). Desta feita, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres,
ligada à Presidência da República, criticou duramente a produção, entendendo
que o enredo do comercial colocava a mulher como objeto submetido ao desejo
masculino. Após receber reclamação formal de um consumidor, o Conselho de
Autorregulamentação Publicitária (Conar) proibiu a veiculação da propaganda.
Lembro-me bem que esta cerveja foi lançada no período do Carnaval em 2010 e,
por acaso, eu vi o comercial pela primeira vez logo após a transmissão da
vinheta de uma rede de TV com uma mulher sambando nua e com parte do corpo
pintado. Quando surgiu a polêmica em torno da propaganda da cerveja dias
depois, eu me perguntava sobre o que tinha de incoerente entre aquela
propaganda e o Carnaval brasileiro.
Enfim… buscamos regulamentação para mediar muitas
de nossas escolhas. Deixamos de jogar lixo na via pública se houver uma lei que
diga explicitamente que isso é proibido. Precisamos de uma lei que determine
com precisão o horário a partir do qual não devemos ouvir som em alto volume.
Antes desse horário, meu amigo, você vai ter de escutar a música que eu
escolher. E assim acontece em relação a vários aspectos da vida cotidiana. Será
que é uma sociedade assim que queremos? Precisamos que um agente controlador
nos diga o que podemos e o que não podemos fazer no nível mais detalhado
possível? Eu penso que esta não seja a melhor maneira de viver em sociedade
mas, infelizmente, é o que temos visto. Neste cenário não somos cidadãos… somos
apenas consumidores. A condição de consumidor é uma entre tantas condições de
um cidadão mas atualmente o papel de cidadão tem se resumido cada vez mais ao
de consumidor. E assim tem sido também em relação ao psiquismo.
O que vem primeiro… o ovo ou o bullying?
Voltemos ao caso do ovo de chocolate. Proibir sua
venda me parece o mesmo que colocar bancos reservados para idosos no metrô e
virar as costas para o desrespeito que eles sofrem fora desses bancos. Trata-se
de puro legalismo. Mas o que de fato importa parece ser deixado de lado em
todas essas situações, inclusive a do ovo.
Tenho um paciente que sofre assédio de colegas na
escola de forma recorrente. Ele disse: “Sofro bullying dos meus colegas por me
desrespeitarem e depois sofro bullying dos meus pais por tentarem me defender.”
Dentro desse clima de legalismo, os pais muitas vezes esperam que a escola
garanta um espaço no qual não haja estresse para seus filhos. Quando surge um
conflito, é comum que os pais cobrem a escola (com possibilidade de processo
judicial como carta na manga) e entendem que se trata de defender seu filho,
uma pessoa de bem, contra seus colegas de má índole. Esse é um dos problemas
principais no processo educacional.
No contexto legalista, a relação com a escola se
transforma numa relação essencialmente de consumo, regulamentada pelo Código de
Defesa do Consumidor. Os pais acabam não se vendo como parte do processo
educacional. Quando seus filhos sofrem bullying, muitos pais acabam não
conseguindo enxergar que os colegas que estão promovendo esse bullying contra
seus filhos também são crianças ou adolescentes provavelmente amedrontados
diante de uma sociedade que não lhes dá atenção adequada.
O adolescente que pratica bullying certamente não
se sente seguro em relação a sua própria identidade e encontra na prática da
agressão uma compensação pelas suas próprias demandas não preenchidas, muitas delas
relacionadas ao afeto familiar. Identificar essas demandas na família é o
primeiro passo para transformar as relações que podem estar produzindo
praticantes e alvos de bullying. Esquivar-se dessa reflexão mantém sua postura
de apenas consumidor.
Do mesmo modo que você leva o carro ao mecânico e
pede para consertar, você pode levar seu filho para o psicólogo e pedir também
para consertar. E pode processar empresas que incitem o bullying ou a escola
que não o tenha evitado. Mas será que não há um bullying praticado pelos
próprios pais quando se esquivam de dar atenção aos filhos e esperam que as
soluções venham de um agente externo?
Um último fator que merece atenção nessa polêmica
toda é o preço do ovo em questão. Ele é vendido por um preço em torno de R$
90,00. Que crianças ou adolescentes estão dispostos a pagar esse preço para
praticar bullying? Parece-me contraditório.
Enfim… não quero julgar o trabalho dos órgãos de
defesa do consumidor. Eles estão cumprindo seu papel e fazendo o que deles se
espera. Creio sim que a reflexão maior cabe a cada um de nós. Temos de
responder a nós mesmos se queremos viver numa sociedade com agentes
controladores que nos deem respostas (que não existem) para nossas demandas –
e, com isso, dando-nos o direito de processar quem não consiga evitar que
problemas apareçam nas nossas vidas – ou participar efetivamente da construção
das soluções para elas, entendendo que somos todos parte da mesma sociedade.
Terceirizar a educação dos filhos é esquivar-se de uma responsabilidade que, na
verdade, pode ser extremamente gratificante.
*Copiei para cá, já que vários textos ótimos que encontro simplesmente desaparecem de seus sites após um tempo.
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